sábado, 17 de novembro de 2007

Heroína dos quadrinhos vira a mesa no ambiente de trabalho japonês



Um colega me enviou a notícia e eu traduzi. Ela foi publicada no The Times, o mais importante jornal da Inglaterra. Hataraki Man é o último mangá seinen de Moyoco Anno, uma das mangá-kas mais competentes da geração atual. Meus comentários vêm em nota.


Heroína dos quadrinhos vira a mesa no ambiente de trabalho japonês

Leo Lewis, Asia Business Correspondent

Uma bem educada, fumante compulsiva, ocasionalmente desbocada personagem de quadrinhos se tornou a heroína para milhões de mulheres japonesas que batalham diariamente pelo reconhecimento em um país onde o ambiente de trabalho é dominado pelos homens.

Através das suas proezas, as mulheres começaram a ver como, talvez, elas poderiam derrubar décadas de desigualdades de gênero e fazer crescer uma das mais criticadas estatísticas japonesas – que, em todas as indústrias, somente 10% dos cargos gerenciais são ocupados por mulheres. [1]

Para ser bem sucedida em sua carreira, Hiroko Matsukata, a editora de notícias de uma revista fictícia, emprega um grande número de artifícios que suas fãs estão rapidamente adotando em suas vidas. A moça de 28 anos é doce quando precisa ser e dura quando ameaçada. Ela é até capaz de controlar o seu uso da língua japonesa, repentinamente passando do tipo de discurso agradável tradicionalmente esperado das mulheres quando precisa que os colegas homens levem o que ela está falando a sério. [2]

Sua mais poderosa arma é realmente controversa: quando o trabalho fica duro e seu chefe aumenta a pressão, ela assume a sua “Versão Masculina” [3] e se transforma em alguém absolutamente focada na carreira, um bem sucedido tufão de produtividade.

Por décadas a indústria japonesa de quadrinhos produziu uma corrente bem sucedida de material registrando as misérias e triunfos dos salaryman. O quadrinho de Anno faz deliberadamente o inverso. Este quadrinho que subverte as fórmulas, Hataraki Man (Homem Trabalhador), rastreia os tormentos e desafios do dia-a-dia de uma mulher que busca contrabalançar o moderno desejo por uma carreira com p peso morto dos valores sociais tradicionais japoneses. A série se tornou tão popular que foi transformada em desenho animado para garotas e novela do horário nobre para mulheres. [5]

As aventuras de Hiroko serviram de base para um guia de estilo de vida para a moderna mulher trabalhadora japonesa, ensinando a arte de permanecer feminina enquanto luta por igualdade e mostra como está a altura de enfrentar chefes truculentos, colegas de trabalho problemáticos e parceiros que não lhe dão apoio.

O governo japonês disse que deseja que 30% de todos os cargos de gerência e das posições de chefia estejam ocupados por mulheres até 2020, o que exigiria vinte mil Hirokos na vida real.

Mas Anno argumenta que seu quadrinho é muito mais do que uma série que trata da arte de como ser bem-sucedida no ambiente de trabalho dominado por uma cultura masculina. O Japão, ela diz, é um “serial waster”[6] de talento tanto de homens quanto de mulheres.[7] Parte da mensagem de Hataraki Man, ela diz, é colocar em evidência um dos piores problemas que afligem o Japão – que o desejo por um estilo de vida mais lento, mais confortável se perdeu.

Ela diz: “A virtude tradicional do Japão era a de que o seu povo levava tudo muito a sério. Conforme essas tradições se erodiram, a qualidade do ambiente de trabalho japonês começou a se degradar.”[8] Ela pontua que as mulheres estão em uma posição de força que possibilita capitalizar em cima da mudança de atmosfera.

As aventuras de Hiroko cativaram a atenção de mulheres que estão em uma posição crítica: mesmo o Governo concorda que alguns dos problemas demográficos, tais como o envelhecimento rápido da população, só serão resolvidos se houver um rearranjo das questões de gênero dentro das corporações japonesas. Cerca de 70% das mulheres deixam seus empregos quando engravidam e a maioria não retorna ao trabalho por pelo menos 15 anos. De acordo com uma pesquisa da Goldman Sachs, mesmo uma mudança modesta na sociedade japonesa – uma adição de 2.6 milhões de mulheres à força de trabalho – teria um grande impacto, fazendo com que o aumento do Produto Inerno Bruto aumentasse dos esperados 1.2% ao ano para 1.5%. [9]

Um outro dia no escritório ao estilo Hataraki-Man

É mais um outro dia agitado de trabalho para Hiroko Matsukata na revista conforme ela vai polegada por polegada rumo ao topo apesar dos colegas difíceis e da sua confusa vida pessoal. Já houve lágrimas, enfrentamentos [10] e intermináveis cigarros. De repente, o chefe ordena uma matéria detalhara sobre o Ministro das Relações Exteriores. Ela respira fundo e se foca. “Modo de trabalho – ligado!!!” ela pensa. “Versão Masculina – de prontidão”. Os seus olhos ficam bem abertos e uma onda de energia passa por todo o seu corpo. Absolutamente concentrada, ela trabalha noite a dentro, ignorando todas as distrações até que o trabalho esteja feito.

[1] O Japão ficou em 91º terrivelmente mal colocado nos índices de igualdade de gênero, pior do que muitos países do terceiro mundo e até alguns islâmicos. Neste artigo "Japan near bottom in gender equality index" é dito que o Japão marcou muito alto em saúde e educação, mas em todas as outras áreas avaliadas, como participação das mulheres em cargos de chefia (parlamento, empresas, ministérios etc.) e renda foi um fiasco e ficou muito bem atrás da Coréia do Sul (73º), que ficou uma posição na frente do Brasil (74º) que caiu no ranking.
[2] Isso aqui é importante, já li mangás, matérias e capítulos de livros pontuando que as mulheres são tratadas como inferiores, gente sem importância, com excesso de intimidade e que delas se espera subserviência no espaço de trabalho. Por exemplo, uma mulher, não raro é tratada pelo primeiro nome com o sufixo “chan”, ou seja, é a “fulaninha”, e não com o “san”, como os colegas que são o “senhor fulano” ou o “senhor cicrano”. Em uma sociedade que leva muito a sério as formalidades, isto já mostra bem o tamanho do problema. Por exemplo, ninguém tem coragem de chamar a protagonista de Hataraki Man de Hiroko-chan, para todos no local de trabalho ela é sempre Matsukata-san.
[3] Nâo gostei do “Versão Masculina”, mas foi o melhor que consegui para “Man Switch”.
[4] Eu entendo o que ela quer dizer aqui. As mulheres japonesas não são culturalmente treinadas para agirem no local de trabalho como funcionárias competitivas, agressivas e dedicadas à carreira. Esses atributos são ensinados aos homens e não à elas, pois das mulheres se espera que elas sejam boas administradoras domésticas (nada de amantes ardorosas) e mães. No entanto, no local de trabalho elas são desprezadas exatamente porque não se enquadram no modelo do “hataraki man” ou, porque se enquadram, como a Matsukata ou a Sumire de Kimi Wa Pet.
[5] Aqui acho que foi o choque cultural, pois de maneira alguma Hataraki Man anime é para meninas, trata-se de uma série animada para mulheres, também. Ela foi exibida no bloco Noitanima que é para animações voltadas para mulheres adultas, como Nodame Cantabile, Honey & Clover e Paradise Kiss, todas exibidas por volta da meia noite.
[6] “Desperdiçador serial”, como em serial killer
[7] O que se ampara no fato de Hataraki Man ser publicado não em uma revista para mulheres adultas e jovens (josei), mas em uma revista para homens jovens (seinen) com grande audiência feminina.
[8] Essa foi uma parte da matéria que não ficou claro... Será que os japoneses não levam é sério demais os seus problemas e o trabalho?
[9] OK, é o caderno econômico, o foco é nisso, mas a questão social deveria ser trazida, assim como a queda de natalidade por conta da diminuição dos casamentos. Se o que se espera das mulheres japonesas é que elas abandonem a carreira quando casam e se tornem dependentes do marido, com pouquíssimos direitos sociais, elas não vão se casar e vai continuar morrendo mais gente do que nasce ou as taxas vão estar muito próximas. Isso é uma forma de resistência que mostra bem o quanto as japonesas não são passivas.
[10] “stand-up office rows”, não acho que aqui estejamos falando de cumprimentos ou ficar de pé, mas de discussões com os outros colegas.

1 pessoas comentaram:

Ta ai mais um otimo manga que dificilmente vem p/ o Brasil, e se vier vai ter uma monte de gente reclamando do "excesso de feminismo" da obra.

É sempre assim, quando uma "minoria" tenta reinvidicar seus direitos (sejam mulheres, negros, homossexuais,etc) ,qualquer manifestação por espaço é rotulada como radicalismo e enxeção de saco

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