quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Capítulo 1: Ecos do Passado (parte 2)

Você deve ter lido a parte anterior deste capítulo. Ele foi cortado para facilitar a leitura, e tem três partes ao todo. Agora, você está na segunda metade. Se caiu aqui por engano, clique para retornar para a parte 1.


XXX

Alda, filha do Marquês de Mülle, costumava acompanhar seu pai em quase todas as viagens, mas em nenhuma delas havia visto tanta miséria quanto a que encontrara naquela visita à capital. Seu pai era um bom administrador, sabia disso, e orgulhava-se, pois seus domínios eram os mais prósperos do Reino, em suas terras não havia miséria nem opressão e a ordem se mantinha sem que fosse preciso o uso da violência, por isso, aquele espetáculo de desolação era chocante para ela. “Um verdadeiro senhor não deixa que seus homens vivam na miséria. Se existe fome, ele deve prover alimento. Mas este caso é ainda pior, pois são terras do Rei, os homens do Rei que estão agonizando e o Rei deveria ser um modelo de virtude para seus súditos. Se a terra adoece, diz a lenda, é porque o Rei está doente, ou o poder está corrompido!” Agora já desconfiava porque seu pai fazia o possível para se manter longe da Corte e jamais a levava quando porventura tinha que ir até lá... Só que agora como já uma moça seu pai não poderia mais mantê-la isolada do mundo da Corte, pois parte do seu futuro dependia das boas relações que deveria manter...

Louis de Mülle fizera o possível para manter sua filha longe da Corte e de seu passado, um passado que o envergonhava profundamente. Havia traído o irmão por inveja, provocando sua morte e a desgraça de algumas das pessoas que mais amava, sua cunhada, a única mulher que pôde chamar de amiga, e seu sobrinho querido, Estevão, que planejava ver casado com sua única filha. Terminara sem as terras do irmão e carregando um sentimento de culpa que havia transformado sua vida num fardo pesado demais. Nunca amara seu irmão mais velho, é bem verdade, nunca havia conseguido ser um bom cavaleiro como ele e por não demonstrar pendores para a vida eclesiástica, seu pai o considerava um estorvo, afinal, os De Brier não dividiam as suas terras. O primogênito sempre recebia tudo. É claro que possuía certas virtudes: fora considerado na juventude um dos homens mais cultos de seu tempo, graças ao empenho de sua mãe, além disso, tinha uma inteligência acima do normal e um discernimento político pouco comum em tão tenra idade e era belo e virtuoso. Mas, como não nascera para herdar o título de seus ancestrais, isso não valia de coisa alguma, teria mais serventia se tivesse nascido mulher ou seguido a carreira que lhe fora designada, como sempre repetia seu pai quando estava mal humorado, ou zangado com a esposa ou com um dos filhos. “Eu era sempre o alvo dos seus impropérios, mesmo quando não tinha sido o causador da tempestade...”, pensou com tristeza.

Durante a juventude, amara uma mulher de todo o seu coração, mas não fora suficientemente forte para lutar por ela, permitindo que ambos fossem separados e ela cruelmente usada para garantir o bom andamento da política real. A única coisa que pudera fazer era vestir luto desde a sua morte, o que parecia a todos algo sem explicação ou sinal de sofrimento pelo seu fracasso em ter um herdeiro. Ah, sim, fraco como era, terminara casado com a noiva que fora rejeitada pelo irmão mais velho, por imposição de sua mãe e para aplacar a ira de seu pai. Só assim conseguira escapar da pobreza absoluta, recebendo por indulgência, uma parte da herança de seu irmão rebelde. Por algum tempo tivera mesmo a vã esperança de herdar tudo, mas quando seu irmão voltara casado com uma princesa, com terras além do canal e um herdeiro a caminho, sua maré de sorte mudou e, não fosse por sua mãe, que o defendia sempre, mais para se opor ao marido que odiava do que por lhe dedicar qualquer afeição especial, teria perdido as poucas terras que recebera, ficando na mais absoluta miséria...

Para seu maior desespero, sua esposa-criança nunca conseguiu lhe dar um herdeiro homem, só uma sucessão de abortos e uma filha, de saúde tão delicada, que todos criam que sucumbiria ainda no berço. Uma única filha enquanto seu irmão tivera dois filhos homens e saudáveis! Mas exatamente por causa disso tivera a única chance de se mostrar forte, resistira às pressões para que repudiasse a esposa e decidira mostrar que poderia fazer com que sua filha fosse melhor do qualquer um. A morte prematura da esposa, lhe proporcionara maior liberdade para se dedicar àquilo que considerava sua única missão e, realmente, para seu grande e único orgulho, fizera um bom trabalho. Sua filha tornara-se uma dama, um cavaleiro, uma letrada e tão boa administradora quanto ele era. Só que ela havia chegado a uma idade onde se deveria pensar em um casamento e, embora desejasse mantê-la junto de si o maior tempo possível, teria que conseguir-lhe um noivo, só que temia que não houvesse ninguém à sua altura. Seria uma tarefa penosa conseguir alguém de nobreza eqüitativa, que não fosse herdeiro e fosse dócil ou compreensivo o suficiente para conviver com a mulher que havia moldado, pois como pai não poderia suportar que sua filha viesse a sofrer ou tivesse que se submeter a situações como as pelas quais ele mesmo passara. Também teria que vencer o ódio da antiga nobreza que o via como traidor e o desprezo da nova nobreza, que o considerava covarde. Mantivera-se fiel à Rainha, embora tentasse escapar de suas redes, mas só que agora ela exigira a presença de sua filha e ele temia que isso fosse o prelúdio de alguma tragédia. “Eu conheço as profecias...”

Estavam os dois perdidos em seus pensamentos quando avistaram a comitiva do Conde de Sayers. De Mülle temia o encontro, mas não poderia evitá-lo de forma alguma...

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